Na infância e na adolescência, vividas em São Tomé e Príncipe, Inocência Mata idealizava Portugal à letra e à imagem do que os manuais escolares, ainda oficialmente coloniais, projetavam.

“As representações são muito importantes, porque configuram o imaginário. Eu imaginava que Lisboa era o paraíso, que não havia sujidade”, diz a convidada desta semana d’ O Tal Podcast, encontrando semelhanças entre o desencanto que sentiu em relação à velha metrópole, e aquele que vem descrito na obra “O Retorno”, de Dulce Maria Cardoso.

“É a história de um menino branco, Rui, que vem a Portugal pela primeira vez, depois do 25 de Abril, e que, ao sair do aeroporto, diz: Luanda é muito mais bonita, não é?”.

Entre as páginas do multipremiado romance, e os capítulos da própria vida, Inocência relata uma desilusão que durante anos não conseguiu verbalizar. “Tive uma deceção quando, aos 18 anos, conheci o Rio Tejo, porque, como maior rio da Península Ibérica, achava que tinha de ser maior que o Kwanza”.

Hoje especialista em Literaturas Africanas e pós-doutorada em Estudos Pós-coloniais, a professora reconhece nessas e noutras experiências a força engenhosa das narrativas, subtilmente enraizadas nas palavras que usamos.

“A linguagem é ideológica, não é inocente”, sublinha, defendendo a necessidade de adequarmos o vocabulário, nomeadamente em relação a grupos historicamente marginalizados, como são os povos Romani e as comunidades negras. “Sim, eu policio-me. Há coisas que dizia e já não digo”.

Da mesma forma que procura retirar velhas construções racistas e xenófobas da sua linguagem, a também ensaísta e investigadora alerta para novas ‘armadilhas’.

“A palavra racializado é, para mim, a mesma coisa que pessoas de cor. É dizer que os brancos não têm cor, que não têm raça”, aponta, demarcando-se da disseminação do termo.

“Estamos a partir do princípio de que a cor branca é a bissetriz. Eu não utilizo esta expressão. Digo não-brancos porque é disso que se trata”.

O sentido crítico, tantas vezes expresso em contracorrente, vem de longe, e corre nas veias.

“Tenho um problema em aceitar sem concordar”, adianta, recordando que, desde cedo, “estava sempre a argumentar, a contra-argumentar e a defender os outros”.

A personalidade interventiva, que o pai chegou a predestinar como vocação para estudar Direito, acabou por ser decisiva para se afirmar profissionalmente.

“Quando acabei o curso, em 86, disseram-me que não tinha condições para concorrer para dar aulas porque não tinha nacionalidade portuguesa. O meu advogado impugnou a decisão, e eu ganhei”, conta, por estes dias enredada numa nova ação judicial.

“As pessoas estão habituadas a que ninguém conteste”, observa, ainda incrédula com o desfecho de uma avaliação, em que a sua carreira é reduzida à publicação de “um só livro, relativamente curto”.

Doutora em Letras pela Universidade de Lisboa, a convidada de Georgina Angélica e Paula Cardoso revela como essa nova tentativa de descredibilização fez transbordar um já farto copo de agressões racistas.

“O ano passado estive em completo burnout, com baixa médica e tudo. Nunca me tinha acontecido. Estou cansada. O racismo cansa, adoece e mata”.

Ouça o episódio completo aqui.

Na inf&acirc;ncia e na adolesc&ecirc;ncia, vividas em S&atilde;o Tom&eacute; e Pr&iacute;ncipe, Inoc&ecirc;ncia Mata idealizava Portugal &agrave; letra e &agrave; imagem do que os manuais escolares, ainda oficialmente coloniais, projetavam.
&ldquo;As representa&ccedil;&otilde;es s&atilde;o muito importantes, porque configuram o imagin&aacute;rio. Eu imaginava que Lisboa era o para&iacute;so, que n&atilde;o havia sujidade&rdquo;, diz a convidada desta semana d&rsquo; O Tal Podcast, encontrando semelhan&ccedil;as entre o desencanto que sentiu em rela&ccedil;&atilde;o &agrave; velha metr&oacute;pole, e aquele que vem descrito na obra &ldquo;O Retorno&rdquo;, de Dulce Maria Cardoso.
&ldquo;&Eacute; a hist&oacute;ria de um menino branco, Rui, que vem a Portugal pela primeira vez, depois do 25 de Abril, e que, ao sair do aeroporto, diz: Luanda &eacute; muito mais bonita, n&atilde;o &eacute;?&rdquo;.
Entre as p&aacute;ginas do multipremiado romance, e os cap&iacute;tulos da pr&oacute;pria vida, Inoc&ecirc;ncia relata uma desilus&atilde;o que durante anos n&atilde;o conseguiu verbalizar. &ldquo;Tive uma dece&ccedil;&atilde;o quando, aos 18 anos, conheci o Rio Tejo, porque, como maior rio da Pen&iacute;nsula Ib&eacute;rica, achava que tinha de ser maior que o Kwanza&rdquo;.
Hoje especialista em Literaturas Africanas e p&oacute;s-doutorada em Estudos P&oacute;s-coloniais, a professora reconhece nessas e noutras experi&ecirc;ncias a for&ccedil;a engenhosa das narrativas, subtilmente enraizadas nas palavras que usamos.
&ldquo;A linguagem &eacute; ideol&oacute;gica, n&atilde;o &eacute; inocente&rdquo;, sublinha, defendendo a necessidade de adequarmos o vocabul&aacute;rio, nomeadamente em rela&ccedil;&atilde;o a grupos historicamente marginalizados, como s&atilde;o os povos Romani e as comunidades negras. &ldquo;Sim, eu policio-me. H&aacute; coisas que dizia e j&aacute; n&atilde;o digo&rdquo;.
Da mesma forma que procura retirar velhas constru&ccedil;&otilde;es racistas e xen&oacute;fobas da sua linguagem, a tamb&eacute;m ensa&iacute;sta e investigadora alerta para novas &lsquo;armadilhas&rsquo;.
&ldquo;A palavra racializado &eacute;, para mim, a mesma coisa que pessoas de cor. &Eacute; dizer que os brancos n&atilde;o t&ecirc;m cor, que n&atilde;o t&ecirc;m ra&ccedil;a&rdquo;, aponta, demarcando-se da dissemina&ccedil;&atilde;o do termo.
&ldquo;Estamos a partir do princ&iacute;pio de que a cor branca &eacute; a bissetriz. Eu n&atilde;o utilizo esta express&atilde;o. Digo n&atilde;o-brancos porque &eacute; disso que se trata&rdquo;.
O sentido cr&iacute;tico, tantas vezes expresso em contracorrente, vem de longe, e corre nas veias.
&ldquo;Tenho um problema em aceitar sem concordar&rdquo;, adianta, recordando que, desde cedo, &ldquo;estava sempre a argumentar, a contra-argumentar e a defender os outros&rdquo;.
A personalidade interventiva, que o pai chegou a predestinar como voca&ccedil;&atilde;o para estudar Direito, acabou por ser decisiva para se afirmar profissionalmente.
&ldquo;Quando acabei o curso, em 86, disseram-me que n&atilde;o tinha condi&ccedil;&otilde;es para concorrer para dar aulas porque n&atilde;o tinha nacionalidade portuguesa. O meu advogado impugnou a decis&atilde;o, e eu ganhei&rdquo;, conta, por estes dias enredada numa nova a&ccedil;&atilde;o judicial.
&ldquo;As pessoas est&atilde;o habituadas a que ningu&eacute;m conteste&rdquo;, observa, ainda incr&eacute;dula com o desfecho de uma avalia&ccedil;&atilde;o, em que a sua carreira &eacute; reduzida &agrave; publica&ccedil;&atilde;o de &ldquo;um s&oacute; livro, relativamente curto&rdquo;.
Doutora em Letras pela Universidade de Lisboa, a convidada de Georgina Ang&eacute;lica e Paula Cardoso revela como essa nova tentativa de descredibiliza&ccedil;&atilde;o fez transbordar um j&aacute; farto copo de agress&otilde;es racistas.
&ldquo;O ano passado estive em completo burnout, com baixa m&eacute;dica e tudo. Nunca me tinha acontecido. Estou cansada. O racismo cansa, adoece e mata&rdquo;.
Ou&ccedil;a o epis&oacute;dio completo aqui.

Um espaço onde cabem todas as vidas, emocionalmente ligadas por experiências de provação e histórias de humanização. Para percorrer sem guião, com autoria de Georgina Angélica e Paula Cardoso.

Um espa&ccedil;o onde cabem todas as vidas, emocionalmente ligadas por experi&ecirc;ncias de prova&ccedil;&atilde;o e hist&oacute;rias de humaniza&ccedil;&atilde;o. Para percorrer sem gui&atilde;o, com autoria de Georgina Ang&eacute;lica e Paula Cardoso.

Georgina Angélica e Paula Cardoso conversam sem guião com convidados especiais

O Tal Podcast

Georgina Angélica e Paula Cardoso n’O Tal Podcast, com Inocência Mata

Inocência Mata: “Tem de haver políticas linguísticas em África que promovam as línguas, mas não apenas como línguas folclóricas. Temos de transformá-las em línguas úteis, para se discutir, falar, conversar”

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